Os desaparecidos estão vivos
Comecei a ouvir falar da ditadura ainda bem criança. Nasci em 1968 e meu pai estava com os direitos políticos suspensos.
Seu mandato de deputado estadual havia sido cassado em 1964, sob a acusação de ser comunista e subversivo. Antes mesmo da anistia, ele conseguiu na Justiça Eleitoral uma decisão que lhe permitiu concorrer a um novo mandato popular. A anistia só veio mesmo em 2007, em sessão da Comissão de Anistia no Ministério da Justiça. Com muita emoção, estava presente. Também por isso, a solidariedade com os perseguidos pela ditadura é uma causa que sempre me mobiliza. São heróis. A nossa missão, lutadores sociais e progressistas de hoje, é manter os desaparecidos vivos, bem vivos. Vejam abaixo a matéria que colhi do Vermelho.
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17 de Outubro de 2009 - 17h19
Parentes desaparecidos nunca mais: a luta de Victória Grabois
Por Lamia Oualalou, no Opera Mundi
Victória Grabois massageia suavemente as costas, doloridas. Há horas está sentada em frente ao computador, escrevendo e-mails para tentar localizar parentes de estudantes e professores da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ), desaparecidos durante a ditadura militar (1964-1985).
“Faço um verdadeiro trabalho de detetive para encontrá-los. Vamos organizar um ato para homenageá-los, é importante que seus parentes estejam presentes”, explica a professora aposentada de 63 anos, pesquisadora do Núcleo de Estudos de Políticas Públicas em Direitos Humanos da universidade carioca e criadora da ONG Tortura Nunca Mais-RJ.
Apesar do cansaço, Victória não desiste. Entende muito bem a dor dos que perderam um ente querido durante os anos de repressão. No caso dela, o pai, o irmão e o primeiro marido, todos membros da guerrilha do Araguaia. O movimento armado, composto por militantes do Partido Comunista do Brasil (PCdoB), foi eliminado pelas Forças Armadas na primeira metade da década de 1970. Pelo menos 70 pessoas foram presas, torturadas e desapareceram na região amazônica.
Três parentes. O número não parece impressionar a universitária, para quem família sempre rimou com militância. “Faço política desde os dois anos”, conta com um sorriso. O pai, Mauricio, era membro do Partido Comunista Brasileiro (PCB), o chamado “Partidão”. Chegou a ser deputado, líder da bancada. A mãe, Alzira, era uma ativista no movimento das mulheres.
A menina participava de todos os eventos políticos. Aos 14 anos, foi às ruas para panfletar em favor do presidente Juscelino Kubitschek (1956-1961). Sobrava dedicação e militância, mas às vezes faltava dinheiro. “Ser filha de comunista é uma barra. Morávamos em uma casa pequena e meu pai destinava todo o salário de deputado para o partido. Era a minha mãe, advogada, que pagava as contas”, lembra, com uma ponta de orgulho na voz.
Após cursar o colégio francês, onde aprendeu a língua de Molière, além do italiano e do espanhol, Victória ingressou na Faculdade Nacional de Filosofia da Universidade do Brasil — hoje, Instituto de Filosofia e Ciências Sociais da UFRJ — onde, com o sonho de mudar o Brasil, participou do movimento estudantil. “Com o meu sobrenome, não dava para ficar fora”, diz.
Victória nem chega a concluir os exames do primeiro ano de universidade. No dia 31 de março de 1964, um golpe de Estado obriga o então presidente João Goulart (1961-1964) a deixar o poder. A jovem é expulsa da faculdade pelos militares. Toda a família, perseguida, se refugia na clandestinidade. Escondem-se por um tempo na casas de parentes e amigos no Rio de Janeiro. “Mas não deu: o anonimato era impossível. Tingi os cabelos, virei loira, mas até assim, todos me reconheciam”, relata, levando a mão à cabeleira negra.
A família então se muda para São Paulo. Pouco depois, o partido fornece aos filhos documentos novos. Com uma nova certidão, Victória passa a se chamar Teresa. O casamento com o jovem Gilberto Olímpio Maria — namorado de longa data —, marcado para abril de 1964, é adiado. A cerimônia é finalmente celebrada no final do ano, em uma casa da família do noivo, no interior de São Paulo.
O romantismo dos namorados dá lugar à organização política. Em 1965, o partido — o PCdoB, criado por Mauricio Grabois e outros depois da divisão do partidão — manda o casal e duas outras pessoas para Guiratingua, uma cidade no interior do Mato Grosso. A intenção era encontrar um lugar para estabelecer uma organização de resistência à ditadura militar.
A experiência não dura. Antes do final do ano, a cúpula desmobiliza o comando e os manda de volta para São Paulo. Naquela época, Victória nem perguntou o motivo. Hoje, entende melhor. “O lugar não prestava para a guerrilha, tinha muitas cidades próximas”.
De volta à capital econômica brasileira, Victória é pega por um sentimento de urgência: sente que é o momento de ter um filho. Engravida logo. Quando o marido recebe novas tarefas do partido, junto com o pai e o irmão dela, André, Victória fica fora. As mulheres grávidas não podiam participar da guerrilha.
Saudade
Os três homens começam a viajar cada vez mais. Victória e a mãe desconhecem detalhes do paradeiro. “Pensava que era Maranhão, ou Amazônia, mas não perguntava, sabia que o silêncio era por uma razão de segurança”, declara. Em julho de 1966 nasce Igor. Victória lembra aqueles anos com saudade. “Éramos felizes, sem sabê-lo. Mesmo na clandestinidade, até 1968, a gente tinha certa mobilidade”, afirma a pesquisadora.
Com a emissão do Ato Institucional nº 5 pelo regime militar brasileiro, em 13 de dezembro de 1968 — época do governo Costa e Silva — o ambiente político se torna sufocante, enquanto a determinação dos guerrilheiros cresce. A jovem mãe encontrou o irmão pela última vez em 1969, o marido, em 1971, e o pai, no ano seguinte.
Um dia, em 1972, toma conhecimento pelo Jornal Nacional que um grupo de contrabandistas havia sido pego na região de Marabá. O secretário-geral do PCdoB, João Amazonas, lhe conta que André estava naquela região e informa sobre a existência da guerrilha do Araguaia, sob o comando de Mauricio Grabois.
No ano seguinte, Amazonas conta que André morrera em uma emboscada. “Fiquei chocada, mas não falei nada para a minha mãe. Ela soube só em 1980. Ninguém pode acreditar que mantive o segredo tanto tempo, porque sou uma pessoa muito extrovertida. Achei que era melhor para ele viver na dúvida”, conta, emocionada. São as últimas notícias que recebe, antes de perder totalmente a comunicação com o partido.
“Viver na clandestinidade é pior que ser preso, ainda mais com um filho pequeno. É uma solidão muito grande”, lembra. Victória precisava se policiar para não trair sua identidade falsa e obrigou o filho de cinco anos a fazer o mesmo. O mais difícil foi explicar para Igor que passaria a se chamar Jorge fora de casa. Ela dizia ao menino que a medida se devia a uma proibição de nomes de origem estrangeira. Nestes anos, Teresa estuda, completa um curso supletivo, tira a carteira de motorista e um passaporte com sua nova identidade, com o qual viaja até para a Europa.
Volta à normalidade
A anistia, em 1979, não implica no fim da clandestinidade. Victória e sua mãe permaneceram esperando um sinal do partido, que nunca veio. Muitos a consideravam morta. Para a jovem professora, voltar a se chamar Victória era vital. Apesar da insistência da mãe, muito disciplinada em relação ao partido, ela procura um advogado, Luiz Eduardo Greenhalgh, para ajudá-la a restabelecer a identidade dela e a do filho. Após 16 anos de clandestinidade, poderia voltar à normalidade.
O processo, porém, sofreu um pequeno atraso. O advogado estava empenhado em tirar da cadeia um líder sindicalista chamado Luiz Inácio Lula da Silva. Victória Grabois considera que o hoje presidente da República tem uma dívida com ela: “Quero que Lula saiba que tive de esperar mais tempo, para que ele saísse prisão!”, brinca. Após os trâmites terem sido completados, Victória e Igor abandonaram São Paulo e voltaram para o Rio de Janeiro.
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